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CORPOS EXPLORADOS

“Ele tinha relação sexual comigo dentro do mercado, no chão e depois falava ‘pega o que você quiser’. Eu pegava só chocolate. Um monte de creme e shampoo e eu pegava só chocolate, coisa

de criança né”

texto, imagens e webdesign

Ethieny Karen

Thalia Zortéa

Thalya Godoy

Corpos Explorados

Na fronteira entre Mato Grosso do Sul e países como a Bolívia e o Paraguai, o tráfico de seres humanos ocorre para abastecer das cadeias produtivas da carne, grãos, siderurgia, mercado sexual, açúcar e álcool, segundo pesquisa “Territórios fronteiriços e tráfico de pessoas em Mato Grosso do Sul”, publicada no portal do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, realizada pelos advogados Maucir Pauleti e Yane Rodrigues e pela professora da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) e pesquisadora da Escola de Saúde Pública de Mato Grosso do Sul Estela Scandola. De acordo com a pesquisa, o tráfico de pessoas para o trabalho no setor agropecuário ocorre internamente no estado, com migrantes do nordeste brasileiro e de locais fronteiriços. No caso do trabalho sexual, são os clientes, brasileiros de outras regiões do país, que definem o perfil de mulheres e jovens a serem aliciados.

A consultora de vendas e cosméticos Evanir Campos, 44 anos, foi abusada sexualmente pelo pai e pelo tio dentro de casa e aliciada aos nove anos por vizinhas para atender turistas em Corumbá (MS), cidade onde nasceu. “Eu entrava em navio, levada por moça de maior, e lá eles abusavam de mim, me usavam sexualmente e me davam bala, pirulito, biscoito, sorvete. Eu ficava lá sendo abusada horas e horas, de um homem para outro”. Evanir Campos explica que geralmente esses navios que atracavam no Porto Geral eram cargueiros, oriundos do Uruguai, Argentina e Paraguai. 

Evanir Campos, aos dez anos, era abusada sexualmente pelo dono de um açougue da cidade em troca de carne e, aos onze, mantinha relações sexuais com o proprietário de outro estabelecimento. “Ele tinha relação sexual comigo dentro do mercado, no chão e depois falava ‘pega o que você quiser’. Eu pegava só chocolate. Um monte de creme e shampoo e eu pegava só chocolate, coisa de criança né”. A consultora explica que foi com essa idade que percebeu a possibilidade de ganhar dinheiro no mercado do sexo. “Os turistas não iam no prostíbulo para pegar menina maior de idade, as ribeirinhas estavam ali. Tem turista que, dizem até hoje, vai para o Alto Pantanal pegar meninas que são vendidas pelo pai ali em troco de pinga”. 

Aos 13 anos Evanir Campos foi transportada para Campo Grande (MS), onde conheceu uma cafetina que conseguia clientes para ela. “Se tivessem parado aquela carreta e perguntado se eu era filha daquele homem, talvez eu não tivesse tão afundada na prostituição e nas drogas como eu me afundei”. No caminho, ela chamava meninas em troca de 50 a 100 dólares concedidos pela dona do prostíbulo. “Quanto mais novinha a menina for, mais dinheiro se ganha. Não se fala muito, mas aqui no estado, paga-se muito bem por meninas novinhas em muitos lugares, principalmente nas fronteiras”.

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Evanir Campos conta sua história nos prostíbulos do estado - Primeira Notícia
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Evanir

A consultora de cosméticos, aos 14 anos, porque era considerada velha demais pelos clientes, foi encaminhada para outras cidades . “Fui para Ponta Porã, me mandavam para Bonito, depois eu fui para Presidente EpitácioSão PauloGuarujá”. Ela explica que essa rede de tráfico humano e exploração sexual no país é interligada e que as aliciadoras sabem para onde as jovens precisam ir para ganhar dinheiro. “Eu conheço um monte de menina que foi estuprada com nove, dez anos e elas falam que permitiram. Uma criança de nove anos não permite ser estuprada, ela aceita porque ela quer um brinquedo. Na verdade, a gente é aliciada”.

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Evanir Campos revela as consequências da exploração sexual e tráfico de pessoas - Primeira Notícia
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Evanir

*Áudio com ruído externo, não é recomendado ouvi-lo com fones de ouvido.

Com 23 anos foi contaminada com o vírus da imunodeficiência humana (HIV), ela passou a vender meninas na região da Avenida Costa e Silva e da Estação Rodoviária Heitor Eduardo Laburu, antigo terminal de ônibus de Campo Grande (MS). Ela explica que a rede de tráfico humano é facilitada pelo fluxo de carretas nas estradas do estado. “São as carretas que levam essa galera. O fluxo é pegar caminhoneiro, porque eu não vou embarcar com uma menina dessas na rodoviária. Eu não vou embarcar no aeroporto com uma menina de 12 anos”. De acordo com o Perfil do Caminhoneiros de 2015,  95% dos entrevistados concordaram que a prostituição é comum nos postos e estradas e 79,1% afirmaram ser comum ver meninos e meninas menores de 18 anos na prostituição. 

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Evanir Campos fala sobre o transporte de meninas para fins de exploração sexual no estado - Primeira Notícia
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Evanir

*Áudio com ruído externo, não é recomendado ouvi-lo com fones de ouvido.

Há 11 anos, após Evanir Campos perder um filho assassinado com 18 anos, ela recebeu suporte para sair da prostituição por meio da jornalista Priscilla Sampaio, que morreu em 2015 diagnosticada com pneumonia. “Eu drogada, eu prostituída, eu cafetina e a finada Priscilla falava ‘eu acredito em você’. Eu mudei a minha história quando alguém acreditou no que eu falei”. Hoje, Evanir é atendida pelo Projeto Nova, criado em 2001 para dar suporte psicossocial a vítimas de abuso e exploração sexual. 

Exploração sexual no estado
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Parede da brinquedoteca do Projeto Nova, entidade que atende vítimas de exploração sexual e tráfico humano no Mato Grosso do Sul

EXPLORAÇÃO SEXUAL NO ESTADO

Mato Grosso do Sul registrou 742 casos de exploração sexual entre 2011 e 2018, conforme dados do Disque 100. O ano de 2018 foi o que recebeu menos denúncias, com 28, enquanto que 2012 foi o que teve mais registros, 175. Na região Centro-Oeste, é o estado com menor número de notificações. Goiás registrou 1.232 casos e Mato Grosso 753 no mesmo período. No geral, o país registrou 35.913 denúncias pelo canal.

Conforme o relatório de 2017, "na maioria dos atendimentos, a vítima e/ou denunciante não autorizava o encaminhamento do registro como denúncia, e então os dados da violência relatada eram registrados apenas no Sistema e o Ligue 180 permanecia inerte diante da violência informada".

Segundo o coordenador da Escola de Conselhos de Mato Grosso do Sul, Antônio José Angelo Motti as vítimas desconhecem que a situação em que estão possa ser considerada exploração sexual ou tráfico humano. Ele afirma que atualmente as pessoas têm mais conhecimento sobre estes assuntos devido o tratamento recorrente na mídia. “A gente tá discutindo em novela, no Globo Repórter, em matérias de jornal, em cadernos de jornal. Vira e mexe tem um programa especial que trata disso. Então isso alcança mais a população que é uma violação de direitos humanos”.

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Antônio Motti fala sobre conhecimento da população sobre tráfico humano e exploração sexual - Primeira Notícia
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Antônio

De acordo com a assistente social, professora da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) e pesquisadora da Escola de Saúde Pública de Mato Grosso do Sul, Estela Márcia Rondina Scandola o perfil da pessoa traficada é definido pela demanda do mercado. Ela exemplifica que nos casos de extração de órgãos no Brasil, são escolhidas pessoas saudáveis e compatibilidade sanguínea. Para adoção de maneira irregular em troca de pagamento, são recém-nascidos. “O Brasil é o único país que tem uma lei que colocou o verbo comprar, que é essa lei recente de 2017 que tem a questão da compra de criança”.

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Estela Scandola explica como o perfil da vítima de tráfico humano atende a demanda de mercado - Primeira Notícia
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Estela

A pesquisadora Estela Scandola e os advogados Maucir Pauleti e Yane Saara Rodrigues, no artigo “Territórios fronteiriços e tráfico de pessoas em Mato Grosso do Sul”, publicado no portal do Ministério Público de Mato Grosso do Sul (MPMS), analisam duas pesquisas e um levantamento de dados sobre o tema na região de fronteira entre Paraguai e Bolívia e o estado. Eles identificam que o tráfico de trabalhadores recruta pessoas para o serviço na produção da carne, grãos, siderurgia, açúcar e álcool e mercado sexual. “Para o plantio e a colheita, a mão-de-obra tem sido trazida de países vizinhos em condições degradantes e sem direitos trabalhistas garantidos, tendo uma crescente ocorrência de denúncias tanto na Comissão Permanente [de Investigação das Condições de Trabalho de Mato Grosso do Sul], Ministério do Trabalho e Ministério Público do Trabalho”. 

Entre 2005 e 2018, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) retirou 4.321 crianças e adolescentes em situação de risco nas rodovias federais do país, de acordo com o Mapeamento dos Pontos Vulneráveis à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas Rodovias Federais Brasileiras (MAPEAR) de 2017/2018. Foram identificados 2.487 pontos vulneráveis à exploração sexual de crianças e adolescentes, aumento de 21% em relação ao período 2013 e 2014. 

Segundo o documento, os critérios que se destacam para que um local seja considerado ponto de risco para a exploração sexual de crianças e adolescentes são prostituição de adultos, a presença de caminhoneiros, o consumo de bebidas alcoólicas, a aglomeração e estacionamento de veículos, a ausência de iluminação e a falta de vigilância. Na comparação entre os biênios, Mato Grosso do Sul caiu da sexta para a décima terceira posição em locais vulneráveis, de 124 para 93. Na região Centro-Oeste, dos 396 locais identificados, 268 foram na área urbana e 128 na área rural. 

O inspetor da Polícia Rodoviária Federal de Mato Grosso do Sul, Tércio Baggio explica que o combate à exploração sexual infantil é difícil de realizar por ser um crime praticado em ambiente fechado na maioria dos casos. Ele explica que estas fiscalizações dependem de ordem judicial e de um levantamento prévio de possíveis locais de exploração. “Já tivemos fiscalização na região de Coxim e de Corumbá. Participamos ativamente em empresas aplicando palestras sobre a importância desse tipo de combate, especialmente nas relativas a caminhoneiros porque eles acabam sendo um público potencial de cometer este delito”.

Redes de Apoio

Viviane Vaz salienta que o tratamento psicológico é feito individualmente e que durante os trabalhos para desenvolvimento de vínculo coletivo é utilizado outras ferramentas.  “A gente trabalha a arte, a culinária ou oficinas de artesanato que vão aliviando e fortalecendo também. Um exemplo é o caso de mulheres que tiveram uma gravidez indesejada ou são vítima de estupro, existe toda uma carga emocional em cima dessas mulheres e elas também passam pela terapia.”

REDES DE APOIO

Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas de 2018, elaborado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), mostra que 49% das vítimas são mulheres, 30% são crianças (23% meninas e 7% meninos) e homens representam 21%. O documento aponta que a exploração sexual e o trabalho forçado são os principais fins desse crime. 

O Brasil notificou 72 vítimas de exploração sexual em 2016, destas 33 eram mulheres e 42 eram meninas. Muitos dos casos de exploração sexual no país são subnotificados e existe uma dificuldade na categorização desse crime. Em Mato Grosso do Sul, 742 casos foram registrados durante os anos de 2011 a 2018 segundo dados do Disque 100

Projeto Nova

O projeto Nova foi criado em 2011 pela psicanalista Viviane Vaz com a finalidade de promover qualidade de vida com atendimento psicossocial a adultos e crianças que sofreram abuso e exploração sexual. Eles atendem 28 famílias e disponibilizam cursos profissionalizantes para as assistidas. 

O projeto, inicialmente, atendia mulheres que tentavam sair da prostituição e necessitavam de um acompanhamento psicológico e ajuda financeira. No contato com essas mulheres, Viviane Vaz percebeu que muitas tinham vivências semelhantes com abuso sexual infantil.  “Elas nos procuram por estarem em vulnerabilidade social, chegam aqui com fobia social, outras não conseguem ter condições emocionais para trabalhar, consequentemente a situação econômica é afetada. Muitas com problemas de saúde, problemas ginecológicos, mas em geral é a situação social e a saúde mental que são mais graves”.

Movimento Mãe Águia

Associação Movimento Mãe Águia também atende a vítimas que sofreram violência sexual. Fundada pela assistente social Daniela Duarte, em 2013, a instituição atende cerca de 95 famílias por mês. “Nós prestamos atendimentos psicossociais, realizamos o acompanhamento dessas famílias, oferecemos reike (medicina alternativa japonesa de relaxamento do corpo e da mente) e todo tipo de assistência social feita por um assistente social.”

A associação realiza campanhas durante o ano para arrecadar fundos para a continuação do projeto, como a campanha do Troco Solidário feita em parceria com a rede Comper, a campanha Abrace da BrazilFoundation e o Maio Laranja. 

O “Maio Laranja” é uma alusão a morte da menina Araceli Crespo que foi assassinada em 18 de maio de 1973. O Movimento Mãe Águia promoveu um café da manhã para inaugurar um sistema de monitoramento dos atendimentos, onde estão disponíveis dados a respeito das famílias que o projeto assiste. 

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Daniela Duarte fala sobre as campanhas que o Movimento Mãe Águia promove - Primeira Notícia
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Daniela

Os assistidos dos dois projetos são geralmente encaminhados por órgãos competentes, como o Conselho Tutelar, a Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (DEPCA) ou a Coordenadoria da Infância e Juventude

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